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Desta vez o texto pediu ao autor para ser um pouco mais profundo, mais amplo, e levou mais tempo a ser escrito. De qualquer forma chegamos ao fim desta jornada juntos, e descobrimos, enfim, que Milton é gente, que sonha, sofre, erra, se perde e se acha, mas que, se deseja algo de bom ao mundo, aos outros, então não pode ser louco, afinal. Quero, também, te agradecer, profunda e sinceramente. Você que veio até aqui comigo, me desculpe onde não atingi todas as suas expectativas, e obrigado pelos momentos em que eu pude ter o privilégio de te divertir e te comover de algum modo. Muito, muito obrigado. Agora, que se ergam as cortinas de sua poderosa imaginação, e adiante na leitura, que o alimento para sua curiosidade está logo aqui embaixo!
Leia a Parte 1 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Leia a Parte 2 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Leia a Parte 3 de "Sob o Olhar da Eternidade"
Hic Sunt Dracones
Desta vez era o fim da tarde, e Milton Steinberg estava novamente em frente ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, na Urca, pensando em como entrar. Primeiro ponderou que, feito nos filmes, era só se deixar capturar.
— Meu nome, — Disse Steinberg ao porteiro, falando pausadamente, gravemente, para ser entendido de primeira — é Steinberg, Milton Steinberg.
O porteiro, depois de olhar para o sujeito na sua frente por um longo momento, enfim disse:
— E?…
Milton voltou para a rua e ficou olhando o prédio, se sentindo amargurado, mas também um idiota. O porteiro não estava avisado para capturar qualquer Steinberg que aparecesse, aquilo não era roteiro previsível hollywoodiano… Ou era? Então Milton voltou e tentou dizer, na portaria, que precisava falar com o Doutor Rubens Castilho Lewroy. Obviamente o porteiro informou que Castilho não estava, o físico havia pedido umas férias, ele achava, e que se quisesse o visitante poderia deixar recado para quando o Doutor voltasse, era só dizer.
Novamente Milton estava na rua estreita em frente ao prédio do CBPF, ponderando. O que pretendia fazer se fosse capturado e levado aos seus algozes? Como parar tudo aquilo? Será que, ao entrar, descobriria que não ocorreu explosão alguma e que, de fato, ele tinha ficado muito doente, completamente louco? Caminhou, tenso, pela rua, e encontrou um pequeno bar. Bebendo uma cerveja, tentou chegar às respostas, talvez a uma linha de ação.
Nada.
No entanto, em certa altura de suas elocubrações, imaginou como uma explosão naquele prédio federal não foi noticiada?
Neste instante seu celular voltou a tocar. Atrapalhadamente, enquanto se lembrava mais uma vez de filmes que viu, e tentava arrancar a bateria do celular para não ser localizado, se deu conta de que havia tentado ser capturado, e, olhando para o smartphone por um segundo, sentindo-se novamente idiota, atendeu.
— Steinberg? — Disse a voz no aparelho.
— Rubens?
— Eu. Conseguiu se mandar?
— Nós?… Cara, eu te vi mesmo hoje?
— Viu. Você conseguiu fugir também?
Após um longo e comovido suspiro, afinal a ligação de Lewroy indicava que provavelmente ele, Milton, não estava louco, Steinberg foi pondo a mão perto da boca e baixando o tom de voz, para tentar não ser ouvido por mais ninguém, além de Castilho, e por fim foi dizendo ao celular:
— Sim. Mas não suporto mais isso. Tô aqui no seu trabalho, quero encarar. Quero entrar, destruir a tal máquina, ou morrer tentando. Essa sensação que trago comigo está me enlouquecendo, cara! Tô fazendo coisas que não faria, agredindo e sendo agredido! Tô com medo de estar doido…
— Não está.
— Graças a Deus! Mas então eu tenho que entrar mais ainda, tenho que mudar tudo, não quero ser preso, não adoro minha vida, mas não quero que ela fique pior!
— Calma… Entendo…
Silêncio. Após esperar um tempo para que Rubens falasse mais, Steinberg disse, em tom suplicante:
— A experiência… Envolvia o que chamamos de correlação inversa de causa e efeito entre partículas. Usando o entrelaçamento quântico, pretendíamos provar inequivocamente que partículas espalhadas pelo espaço e tempo podiam trocar informações entre si, ou seja, causar efeitos entre si, tanto para frente, quanto para trás no tempo. Tem haver também com uma pesquisa sobre o Universo holográfico, não vou entrar em detalhes. Os equipamentos funcionam em vários centros de pesquisa pelo mundo, em câmaras no subsolo, e em dias alternados, medindo depois de cada teste seus efeitos uns sobre os outros. A Doutora Alice, que entrou recentemente para o projeto, sugeriu alinhar todos os labs e pôr as máquinas para funcionar ao mesmo tempo. É quando a explosão ocorre, às sete e meia da manhã, de uma mesma quinta-feira. Sempre.
— Então vocês?…
— Sim, já sabemos. Um camarada meu, o José Gustaf, sugeriu inclusive uma solução, mas o cara foi despedido, nunca mais soube dele. Acho que ele…
Mais uma pausa.
— Acha o quê?
— Alice tá metida com alguém, vi uns e-mails dela pra alguém na Finlândia. Acho que querem que tudo fique assim.
— Não!
— Escute, Iceberg, minha carona vai sair aqui. Vou jogar fora esse celular que estou usando. Não tenta me encontrar, por favor, meu amigo. E sai daí!
— P-peraí! Peraí, me diz como eu posso acabar com isso!
Silêncio. Quanto Milton já achava que Rubens havia desligado, este último diz:
— Minha sala. Meu computador. Pressione éfe sete na inicialização, tem um dual boot ali, entra no segundo sistema. Lembra do programa infantil que assistíamos na sua casa, Iceberg? Capitão Asa, e o jogo em que você sempre foi fera. É a senha. Adeus.
Sem dúvida, agora, Rubens havia desligado. Afastando o celular, os olhos de Milton se perderam no infinito. Ainda precisava entrar, mas agora tinha uma chance, sabia de uma boa pista. Certamente Rubens havia dito a ele como entender e destruir o experimento que o estava enlouquecendo.
Levantou-se, no impulso de voltar à portaria do CBPF, mas foi interrompido.
— Cara, vai esquecer seu telefone em cima do balcão! — Disse a senhora gorducha e com ares de pessoa simples e muito objetiva.
— Obrigado. — Respondeu Milton pegando o aparelho que, sem perceber, ele havia largado no tampo do bar. Estranhamente notou que o smartphone estava zerado de bateria. A quanto tempo?… Piscou, não podia entrar naquela paranóia de novo, ele havia conversado sim, com Rubens, e agora sabia o que fazer, precisava entrar no prédio, precisava chegar à sala de Lewroy.
Caminhou resolutamente pela rua, e estava entrando no prédio novamente quando ouviu alguém dizer:
— Oi, vizinho?
Inacreditavelmente Rheny Rousseau estava quase ao seu lado, entrando no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas junto com ele. Aturdido, Milton ficou olhando para ela, que pareceu ler seus pensamentos e explicou, sorrindo, encantadoramente:
— Sou advogada. Tenho um cliente aqui que preciso ver para pegar umas assinaturas. — falou, levantando com o polegar a alça de uma pequena mas aparentemente cheia mochila que trazia no ombro. Ela estava elegantemente vestida, com um daqueles terninhos que deixam as mulheres ainda mais atraentes, ao menos na opinião de Steinberg, que, por sua vez, disse:
— Ah, hum, desculpe, eu não esperava te ver agora.
— Foi mal, está ocupado? Trabalha aqui? — Rheny disse, ficando mais séria, parecendo ligeiramente constrangida.
— Não se desculpe! É… É muito, muito legal mesmo te rever, quero dizer, eu queria isso, quer dizer… Te ver de novo.
Ela sorri novamente, francamente, e retruca:
— Eu também queria. Vai entrar?
— Onde?
Ela aponta, divertida, para a portaria do CBPF.
— Ah! Sim. Preciso. Mas não…
— Não?
— Quero dizer, não vão me deixar entrar. Não, eu não trabalho aqui, um amigão meu de infância trabalha, ele… Deixou um documento muito importante pra mim na sala dele, mas saiu de férias, esqueceu de avisar aos caras. Mas preciso mesmo, preciso dar um jeito de entrar…
Eles se entreolham por um instante, Steinberg ameaçou dizer algo, mas parou. Rheny então disse:
— Eu… Desculpe, gostaria de ajudar, mas… Prédio Federal, advogada, problemas. — Deu de ombros, sem jeito, e sorrindo de lado.
— Nãããão! Não, não, quê isso! Eu não ia te pedir isso. — Ele podia sentir o seu rosto se ruborizando.
Rousseau lhe estendeu a mão, que ele apertou, e ficaram assim, de mãos dadas e se olhando, ambos um tanto sem jeito, até que a moça disse:
— Posso lhe pedir uma coisa?
— Sim?
— Não desapareça.
Após mais um ligeiro momento, ainda de mãos dadas, estas se afastam, e o homem diz, com convicção:
— Prometo.
Ao ouvir isso, ela acena, com uma graça incomum naqueles dias, e vai se afastando. Ele, no entanto, a chama, e lhe diz:
— Como eu não vou desaparecer? Me dá seu telefone?
Rheny, ainda suavemente sorridente, faz que sim, e diz o número. Ele saca o celular, para anotar no próprio aparelho o número dela, mas está sem carga. Então ele busca, dentro da sua pasta tiracolo, desajeitadamente, algo em que escrever, mas Rheny é mais rápida, e tira uma caneta e uma folha de papel, uma fotocópia de algum documento, de uma das pastas que carrega em sua própria bolsa, anotando seu número no verso que estava em branco, enquanto vai dizendo:
— É cópia de um processo antigo, sem informações pessoais de clientes, essas coisas. Enfim, não tem importância. Tome, — ela entrega a folha de papel a Milton — Me liga mesmo. Como você disse, precisamos nos proteger, uns aos outros, e… Poxa, por favor me desculpa, eu sinto muitíssimo mesmo não poder te ajudar a entrar aqui…
— Nem pense mais nisso. Eu vou ligar pro meu amigo agora, e resolver isso, fica tranquila, mas… — Ele não acreditou quando aquilo saiu de sua boca, pois costumava ser muito tímido para essas coisas, só que acabou dizendo assim: — Que tal um cinema e um bom bate-papo, pra me compensar?
— Fechado! — Diz ela, erguendo o polegar enquanto caminha em direção ao balcão do porteiro.
Steinberg ficou olhando. Estava longe demais para ouvir o que se dizia, mas viu Rheny se identificar, e entrar. Era uma tarefa difícil, para ele, não se deixar hipnotizar pelo sensual e elegante movimento dos quadris da moça, enquanto ela seguia saguão adentro. Ele sorriu, sob efeito, novamente, de sua timidez. Mas, sem dúvida, era fácil gostar tanto da pessoa Rheny, quanto da mulher.
Depois que ela subiu em um elevador, o porteiro deu um breve olhar desinteressado em direção à Milton, e voltou sua atenção ao computador em que registrava as pessoas que entravam. O homem, provavelmente, matava o tempo jogando paciência ou algo assim.
O jogador de Tetris, por sua vez, ficou olhando do papel com o telefone de Rheny para a portaria, e de lá novamente para o papel. Estava se sentindo muito bem por ter conseguido o telefone da sua vizinha, especialmente por achar cada vez mais que ela era uma mulher muito legal, delicada, charmosa, inteligente. Rara.
Mas um sentimento de tristeza assomou em seu coração, mais forte até do que a agonia de saber que o mesmo dia se repetia sem parar, e ele murmurou, entre os dentes:
— Eu nunca mais vou vê-la… Não vai haver futuro para nós… Para ela…
Oprimido por aquela súbita certeza, Milton sentiu o peito ferver de agonia, e seus olhos, por um instante, marejarem. Precisava fazer algo… Precisava…
Então tomou um decisão. Ergueu a folha que recebeu da moça e foi caminhando, resolutamente, em direção à portaria. Assim que chegou lá, o porteiro ergueu os olhos da tela do computador, onde devia estar jogando cartas, e disse:
— Senhor… Milton, eu acho.
— Isso! Milton Steinberg. Eu estava esperando a Doutora Rheny Alencar Roussel, a advogada que acabou de entrar, para pegar com ela um documento, — acenou a folha que trazia na mão — só que ela me deu o documento errado, e vai precisar muito deste aqui. Pode chamar ela de volta, por favor?
O porteiro, que certamente havia percebido os dois conversando na entrada do prédio, disse, sorrindo e talvez querendo voltar depressa ao seu joguinho:
— Ela não deve ter chegado à sala trezentos e quinze ainda. Me empresta sua identidade. Mais fácil o senhor ir atrás dela.
Em menos de dez minutos, no entanto, Milton saltava do elevador no andar onde, se ele lembrava direito, ficava a sala de Rubens. Não demorou a encontrar o recinto, confirmando o nome do amigo numa plaqueta presa à porta. Testou a maçaneta. Aberta.
Entrou e acendeu a luz, indo a passos largos até a escrivaninha de Lewroy, ligando o computador, e assim que os caracteres de inicialização da máquina começaram a aparecer na tela, Milton pressionou, com força, a tecla marcada com os caracteres “F7”, e esperou. Linhas de comandos subiam, parecendo intermináveis, enquanto a máquina se preparava para trabalhar. Steinberg chegou a pensar que o dual boot não existia, mas, subitamente, o monitor exibiu uma tela rústica, feita de caracteres, pois os sistemas gráficos do computador ainda não estavam disponíveis, pedindo ao usuário que escolhesse entre dois sistemas operacionais. Digitando “2” e premindo a tecla “enter”, Milton aguardou mais um pouco. Devia ser um computador mais antigo, mais lento. Finalmente a tela de “login” do sistema operacional surgiu, com seu fundo gráfico e colorido, e seus campos para o usuário digitar nome e senha. O nome já estava preenchido com “Rubens Lewroy” e a senha Milton digitou “capitaoasatetris”, mas recebeu uma mensagem de erro. Tentou de novo, desta vez com acento, “capitãoasatetris”, e o sistema se abriu, ao mesmo tempo em que a porta da sala se abria também, e Doutora Alice Moretti entrava.
— Milton! Que interessante tê-lo aqui, de volta. Não. Não precisa se levantar, e por favor, não se mexa. Estes cavalheiros aqui podem ficar agressivos.
Um dos três homens de terno, que entraram atrás de Alice, era o cara em que Lewroy havia dado um pontapé nos testículos. Na ausência de Rubens, o olhar intenso do sujeito indicava que Steinberg serviria bastante bem para ele extravasar sua raiva com o que havia ocorrido. Na verdade o homem dos testículos feridos já erguia as mãos, empunhando algo. Com uma última espiadela para o computador na sua frente, Milton percebeu que não havia meio fácil de fechar o sistema, a não ser desligando a máquina toda, apertando o botão “on/off” do aparelho. Lançou a mão na direção do botão, e ouviu um estalo assustador, enquanto sentiu a eletricidade de uma arma de choques percorrer seu corpo. Convulsionou intensamente, e desabou no chão, sendo abraçado por uma escuridão cinzenta, enquanto ouvia, cada vez mais longe, uma mulher dizer “já chega, Jack!”. Era Moretti.
— Como assim? — Perguntava uma mulher, em algum lugar próximo, enquanto Milton recobrava a consciência. Novamente ele levou meio segundo para concatenar a voz com suas lembranças, e entender que era mais uma vez Alice falando, perguntando algo, com intensidade, para alguém, que respondeu a ela com uma voz masculina e desconhecida:
— Pouco depois que o computador do Doutor Lewroy foi ativado, lá em cima, depois que eu te avisei que ele foi ligado, na verdade, um programa rodou, acessou a rede do prédio, e alterou a programação da Armillary, fazendo com que ela…
— Pára a Armillary agora! E desliga esse computador!
— Já parei, olha, desconectei um cabo de força primário. Por sorte eu estava calibrando ela, lá dentro, quando entendi que ela estava sendo reprogramada. A Armillary não vai a nenhum lugar, enquanto aquele cabo não for reconectado. E o computador do Rubens, eu preciso analisar, ele tem todos os cálculos do Doutor Gustaf, que o programa dele usou para alterar as Armillarys.
— Espera. O computador era do Rubens, mas os cálculos e o programa invasor são do Gustaf? E o que esse programa fez?
— Sim, são do Gustaf. Os doutores Lewroy e Gustaf também tinham seus segredos. O software invasor programou, via a nossa máquina, todas as Armillarys para se ativarem juntas de novo, mas reposicionou o circuito cinemático; vou revisar os cálculos dele pra ver qual o objetivo, mas tenho quase certeza que ele conseguiu um modo de anular a onda que criou o loop. Ei, eu acho que seu convidado acordou. Esse camarada é físico?
Miltou abriu, afinal, os olhos, e percebeu que estava em um tipo de laboratório, algum galpão cheio de equipamentos de engenharia. Depois se deu conta de que era o subsolo. Ele estava no subsolo onde acontecia a experiência que deu o nó no espaço-tempo. Sua mente entorpecida captou uma fímbria de ideia que estava saindo, sem ele perceber claramente, por sua boca antes até de ele despertar: o tempo não se curva sozinho, o espaço, e a matéria, se curvam com ele.
— Ele anda balbuciando algo parecido com o que Gustaf dizia, que a Armillary, ao travar o tempo, adiaria nossas mortes, mas se uma incerteza não nos pegasse, o acúmulo de massa, causado pelo refluxo do espaço-tempo, ultrapassaria dez elevado a cinquenta e seis gramas rapidamente, dentro de nosso horizonte cósmico, e eventualmente viraríamos um buraco negro.
— Espaço… Acumula… Matéria… — Murmurava Steinberg, pois essa ideia lhe ocorreu enquanto flutuava na escuridão plúmbea: se espaço e tempo formam a mesma coisa, e carregam em si a matéria, será que repetir vezes sem fim o tempo não acaba aumentando a matéria naquele ponto do Universo?
— Acho que Milton, que a propósito é leigo, não teve tempo de ler nada. Rubens deve ter lhe dito isso. Mas essa teoria faz algum sentido? — Perguntou Alice Moretti, enquanto olhava, tensa, para Steinberg. Havia ao lado dela um homem vestindo o clássico jaleco branco de um pesquisador, com olhos intensamente perspicazes. Mais ao fundo, se via uma esfera maior que um homem alto e de pé, feita de anéis entrelaçados, que deixavam o centro oco aparecendo nos vãos entre estes anéis, e tendo toda a sua superfície aplicada com versões gigantes e muito sofisticadas do que pareciam ser velas automotivas, de onde pendiam diversos cabos, alguns grossos, provavelmente cabos de energia, outros mais delicados, possivelmente de dados. Esta, pensava Steinberg, devia ser a tal Armillary que era mencionada a torto e a direito. O nome não lhe era estranho, e lembrava algo que ele achava ter visto na Wikipédia.
— Agora que encontramos os cálculos de Gustaf, e eu consegui dar uma olhada neles, sim, a matemática está bastante robusta. Quero revisar, mas se não tivesse tempo, apostaria que está certa.
— Como uma pilha infinita de cópias… — Disse Milton, sua voz gradativamente ganhando firmeza e subindo de tom. Ele já estava bem desperto, e percebendo que estava sentado em uma cadeira de metal fixa em uma parede, à qual ele jazia preso por uma algema, também metálica. Steinberg prosseguia dizendo: — Eu não li, mas cheguei à mesma conclusão, mesmo sendo a porra de um Zé ninguém! Uma pilha de fotocópias, se acumulando sem fim, cada vez mais pesada, até vergar a mesa em que está apoiada, e fazer ela partir ao meio, afundando sob o peso!
— Quando eu precisar da sua avaliação técnica, jogador de Tetris, eu peço. — retrucou Alice, de modo ferino, e, voltando-se para o sujeito ao seu lado, ordenou: — Retome sua análise, Doutor Danilo.
— É uma metáfora rude, mas vinda de um leigo, bastante aproximada, Senhora Moretti. — Disse o homem de jaleco, que agora Milton sabia se chamar Danilo, e que continuou: — Mas, enfim, o Gustaf, acredito, estava certo. Vamos colapsar em breve. O horizonte de eventos do novo buraco negro coincidirá com a frente de onda do nosso primeiro disparo sincronizado.
— Quanto tempo?
— Impossível calcular com exatidão. Mas não deve demorar. Não sabemos como as ondas do efeito se propagam. Se for quadridimensionalmente, o acúmulo de massa será em progressão geométrica. — Ele pigarreou, e depois concluiu: — Gustaf achava que eram quadridimensionais.
— Vai ser em poucos dias. — Intrometeu-se Steinberg. — E essa filha da mãe sabe muito bem que essas ondas são em quatro dimensões sim! Eu ouvi ela dizer isso, em inglês!
— Afinal, — quis saber Danilo — quem é este homem?
— Ele é a anomalia.
— A… — Danilo se aproximou de Milton, mirando e analisando o homem algemado como se este fosse um exemplar todo constituído de matéria exótica, alguma aberração cosmológica. — A anomalia que descrevi na minha parte das equações?
— Sim.
— Incrível. — O Doutor Danilo se afastou, como se agora Steinberg estivesse fazendo um sensor de radiação gama estourar, e continuou: — Eu jamais adivinharia que pudesse ser uma pessoa, e que ocorresse tão perto de uma das Armillarys. A distância, nos meus cálculos, foi inferida, mas eu jamais chegaria a algo menos que zero vírgula oito sete três ano-luz. Como tem certeza disso, que uma pessoa é a anomalia?
— Ele soube de tudo, teve certeza de que o tempo estava em curva toroidal, no exato momento da experiência. Alega ter, inclusive, visto reflexos da frente de onda.
— Ah, brincadeira! Como ele pode ver isso? Intuição? Impossível!
— A consciência provoca colapso?
Danilo olha para a mulher, e diz, com um sorriso:
— A senhora está brincando? Não está?
Ela deu de ombros, e disse:
— Vou falar com os gerentes. Não faça mais nada.
— A senhora lembra que para o acidente voltar a acontecer, e tudo continuar do jeito que a gerência quer, todas as máquinas têm que estar operacionais, todas as manhãs, não lembra? — Alertou Danilo.
— Eu sei! Mas não faça nada agora.
— E ele? — Danilo apontou para Milton.
— Meus seguranças estão aqui fora, ele está algemado, não vai dar trabalho. De qualquer forma, eu queria que você desse uma olhada em Milton, aqui, para depois sugerir como devem ser os procedimentos de análise dele.
— O que eu quis dizer foi, o que vão fazer com ele depois?
— O normal, — falou Alice, como se respondesse a um “bom dia”, e já saindo pela porta do laboratório, certamente em direção a elevadores — analisar, processar e descartar.
Milton estremeceu. Aquilo não era loucura sua, não era uma fantasia, ele estava prestes a morrer, e seu sangue gelava diante da perspectiva de não poder fazer nada contra isso.
No silêncio que se seguiu, Steinberg mordia os lábios e feria os pulsos tentando se soltar, em vão. Enquanto isso ouvia o zumbir dos equipamentos à sua volta, e o tamborilar dos dedos do Doutor Danilo no computador que havia pertencido ao seu amigo, Rubens. Em algum lugar um relógio tiquetaqueava os minutos, que talvez fossem os últimos de Milton. A qualquer hora viram levá-lo. Será que iam cortar ele? Furá-lo? Dissecá-lo? Alice parecia fria e cruel. Ou talvez só estivesse tentando pôr medo nele… Não, as possibilidades eram tão horríveis que ele não devia levar em consideração esta última hipótese. Devia imaginar o pior.
O tempo se arrastou, suarento e tenso, e a certa altura um dos seguranças de Alice entrou. Não era aquele que Lewroy havia derrubado. O sujeito examinou Steinberg, verificando a algema, depois foi até Danilo, e sussurrou algo. O Doutor fez que sim, em resposta, e esperou o segurança sair, para só então dizer:
— É, Milton. O Gustaf tinha razão.
— Então desliguem essa máquina pra sempre, e me tira daqui.
— Seria bom. Mas entenda, a gerência está acostumada e usar gente, desde muito, muito tempo. Eles querem viver indefinidamente no topo absoluto da nossa sociedade, são maquinadores terríveis, e estão no comando de muitos pontos-chave. Nossos políticos, por exemplo, são fantoches baratos nas mãos dos gerentes, usados para fazer e limpar sujeiras. — Ele se levantou e circundou Milton, desaparecendo atrás deste, mas continuando a falar: — São ágeis, têm que ser, no entanto, naturalmente, os caras demoram algum tempo para tomar decisões, como todo conselho diretor, e no nosso caso, um único dia, sem uma atitude, pode significar o fim.
Um puxão, e um estalo metálico no pulso de Steinberg. Danilo havia, com algum alicate de pressão bastante forte, existente naquele laboratório, cortado a corrente da algema que prendia Milton, e este deu um pulo, parando em pé e visivelmente na defensiva, olhando para todos os lados, buscando saídas, armas, qualquer coisa com que se defender! O homem de jaleco disse, elevando só um pouco a voz:
— Calma, Milton, se quer continuar vivo, fica calmo e me escuta. Se você sair por aquela porta, os seguranças vão usar todos os aparelhos de choque deles em você, até o seu cérebro fritar.
Milton parou de buscar uma saída, e olhou para Danilo, ferozmente.
— Estamos do mesmo lado, pelo menos agora, no momento final, meu caro jogador de Tetris. Hum, bom jogo, o Tetris. Exige percepção de padrões, lógica…
— Por quê me soltou?
— Eu vou ligar a Armillary, e ter certeza que os caras não consigam entrar aqui antes de ela fazer o que Rubens e Gustaf queriam que ela fizesse, mas alguém tem que estar ali dentro dela e reposicionar aquele cabo solto que eu desengatei emergencialmente e por acaso, quando percebi que a máquina estava sendo reprogramada.
— Por quê você não faz isso agora? Eu não preciso estar ali dentro quando essa coisa ligar! Ligue o cabo, depois ligue a máquina.
— Um alarme vai tocar nas outras Armillarys assim que esta aqui for energizada novamente, e aposto que eles derrubam uma das outras para não perderem sua virtual imortalidade. Estou contando já com um pouco de sorte que nenhum outro operador esteja perto dos cabos internos quando ligarmos tudo aqui. Escute, honestamente, você já está morto mesmo, eles vão descartar você numa cova rasa como indigente, em alguma favela, de algum país miserável. Mas você tem a opção de dar sentido à tua morte, e pode me ajudar aqui, a… Salvar o mundo!
Como Milton ficasse apenas olhando para ele, ainda com fúria contida, Danilo então tentou outro caminho de convencimento, perguntando:
— Você tem filhos? Que tal agir por eles?
— Nunca… Nunca tive filhos…
— Deve haver pessoas que você gosta.
Milton fechou os olhos por um instante, e pensou em várias pessoas, inclusive em Rheny.
— Algumas.
— Então. Não tem mais volta pra gente, Milton. Você diz que tem certeza do que está acontecendo. Eu também. Li e agora entendo os cálculos. Só tem um jeito de fazer o mundo não desaparecer engolido por um abismo negro, é cumprir o programa que o Rubens e o louco genial do Gustaf deixaram.
O Doutor Danilo caminhou tranquilamente, enquanto falava, até a porta do laboratório, virou uma tranca, fechando-a, e passou o grande alicate que havia usado para liberar Steinberg por uma apara dupla que havia ali, travando ainda mais a entrada do laboratório. Neste instante alguém do lado de fora testou se conseguia abrir aquela porta, e, não conseguindo, começou a bater cada vez mais forte nela. Danilo agora dizia:
— Eu vou preparar os sistemas de apoio. Acho que desta vez não vai explodir, foi algo haver com os circuitos cinemáticos, como foram alinhados antes. Bem, quando eu disser, conecte este cabo naquela entrada vermelha ali dentro, consegue ver? Venha, dê a volta na Armillary, por aqui, assim. Tem uma parte aberta aqui, viu?
Entregando a ponta do cabo de força à Steingberg, cujos olhos avermelhados lacrimejavam (enquanto a porta do laboratório era chutada violentamente pelos seguranças, que gritavam sem parar), Danilo continuou:
— Entre e puxe a porta, vou fechar isso, a esfera precisa estar lacrada para funcionar.
— O que a Armillary faz? — Quis saber Milton.
— Bem… No fim, é uma espécie de, digamos, máquina do tempo. Antes que pergunte, jogador, — Milton achou curioso, mas Danilo não usou a palavra “jogador” em tom depreciativo, pelo contrário, pareceu mais uma saudação respeitosa. O físico prosseguia, dizendo: — e explicando bem grosseiramente, a Armillary vai… Voltar no tempo, até o momento em que ela foi acionada pela primeira vez. Só que ela vai se posicionar logo depois da frente de onda que curva o espaço-tempo gerada pelo primeiro disparo. Então ela vai disparar novamente. A frente de onda do primeiro disparo, se Gustaf estiver certo, e geralmente ele está, deve ser anulada por este disparo de onda que vamos iniciar agora.
— Eles vão te matar também. — Murmurou Steinberg, para o físico, apontando com a cabeça a porta do laboratório, que parecia estar detendo uma turba furiosa do lado de fora.
— Não vão não, depois que Rubens sumiu, e que Gustaf morreu, eu sou o único que entende a matemática desse experimento, e que eles têm aqui no Brasil.
— Eles sempre podem trazer gente de fora. — Murmurou Steinberg, e, até um tanto timidamente, o jogador de Tetris, o Zé ninguém, o quase louco, o homem gentil e solitário chamado Milton Steinberg, entrou na Armillary, puxando atrás de si a parte da esfera que o fechou dentro da máquina.
— Ocorre, jogador, que o meu risco é um pouquinho menor que o seu. — Enquanto falava, o sujeito de jaleco branco começou a agir, acionando chaves, premindo botões, e digitando em teclados de computadores espalhados em semicírculo em frente à Armillary. O zumbido dos equipamentos elétricos e eletrônicos crescendo rapidamente. — E, Milton, eu tenho filhos. A gerência pode tentar algo contra eles, ou nada pode acontecer se as frentes de onda se anularem, e este projeto for considerado um fracasso… Na verdade não faço ideia do que vem depois. Só sei que se ficar como está, tudo morre.
E Danilo parou em frente ao banco de terminais que controlava a esfera, como se tivesse feito tudo que podia, e ficou olhando para Milton, lá dentro da máquina. O rosto do físico (cujos olhos pareciam, agora, muito cansados) sendo iluminado pelo fraco brilho dos monitores, já que as luzes do laboratório caiam drasticamente, enquanto toda a corrente elétrica estava sendo revertida para a Armillary. Lá dentro, Milton posicionou a ponta do cabo de força bem próxima ao respectivo conector na máquina. Era tudo coberto por grossa borracha. Eletrocutado, pelo menos, ele não morreria.
A porta do laboratório foi arrebentada para dentro, como se uma besta grande e furiosa a tivesse abalroado, no exato instante em que Danilo gritou para Steinberg:
— Agora!
Milton sorriu, com lágrimas nos olhos, triste pela vida que ele não teria, e feliz pelas que salvaria. Murmurou, quase inaudivelmente:
— Padrão, já vi essa cena antes.
Ligou o cabo, e sumiu, engolido por uma explosão.
Deus Ex Machina
A Armillary, Milton, e tudo o que estava muito próximo dela, claro, deixaram de existir, pelo menos na conformação bariônica em que estavam organizados. Ou seja, seus corpos foram desintegrados. No entanto, a informação que aqueles bárions codificavam, não.
Um dos objetivos da Armillary era, precisamente, encontrar o fio condutor do processamento de informações do Universo, e ela era dotada de recursos para tornar a si mesma, ao menos por instantes, parte desta incomensuravelmente grande massa de dados auto-processantes, que era o espaço-tempo e seu conteúdo, em um nível logo abaixo do quântico. Assim, mesmo que a máquina, e tudo que ela continha, agora fossem apenas dados que gerenciavam a si mesmos (como, a propósito, o Cosmos inteiro faz, em toda a sua gloriosa existência multifacetada), ainda assim a máquina nascida da humanidade existia, funcionava, e seguia sua programação. No entanto ela agora não era mais somente a Armillary, ela agora era, também, Milton Steinberg.
Confusa e apavorada, no entanto, a informação inteira do que havia sido, fisicamente, o homem chamado Milton Steinberg entendeu a Armillary. Ele entendeu o que ela era, o que fazia, e o que ela se tornou, e o que a máquina fez ele se tornar, e, pendendo sobre o abismo da Existência, estirado até pouco mais de quarenta bilhões de anos-luz, Milton gritou, sem controle, por espanto e por terror mesmo! E seu grito reverberou em microondas pelo Universo. Tentou agarrar algo, e neutrinos fugidios se espalharam, onde deveriam ser as mãos do homem, atravessando gás e planetas desgarrados na escuridão entre as estrelas, sem conseguir tocar nada!
A Eternidade reverberou em sua mente, e Milton se sentiu destroçado por ela, dado que ela era inconcebível, visto ela ser incompreensível, esmagadora e aterradora! No entanto havia algo em que se agarrar, havia a Armillary, e sua simples programação. E com esta programação, Steinberg possuía um momento na vastidão do tempo ao qual se apegar, feito uma bóia em que se agarrar em um mar vasto e colericamente tempestuoso. O momento ao qual ele se segurava, então, brilhou na treva estrondosa e reverberantemente silenciosa de sons, mas gritante de eletromagnetismos. Este momento era exatamente o instante em que a esfera viajante do tempo e espaço pulsou, tornado-se real, sendo projetada novamente, como tudo mais, das bordas do Universo para o mundo “real”. Mas logo depois a Armillary e Milton voltaram a mergulhar na Eternidade, feito lágrimas dissolvidas no dilúvio informacional que era a substância nevrálgica da Existência.
No entanto, quando esteve “real” de novo, a Armillary que carregava Milton, sem seu circuito cinemático compensando, e devido ao movimento da Terra em torno do Sol, do próprio Sol em torno do Centro da Galáxia, e desta em relação ao Universo, acabou ressurgindo em um ponto onde a Terra ainda não havia chegado, a bilhões de quilômetros de distância do lugar, na superfície terrestre, de onde a Armillary partiu. Sim, é verdade que a esfera saltou para um momento passado, mas ainda assim, neste instante alvo, nosso planeta ainda estava por chegar ali.
A frente de onda do primeiro disparo da Armillary, tão veloz quanto a luz, chegaria primeiro, mas nosso mundo azul ainda levaria cerca de um dia para surgir no horizonte infinito e passar por onde a Armillary estava agora.
Portanto, de fato, e exatamente como fora previsto por Danilo, à partir dos cálculos de Gustaf, a programação da máquina viajante do tempo a fez surgir em um ponto depois da frente de onda de seu disparo original, aquele disparo que deu ao espaço-tempo próximo da Terra a forma de um anel, ou pneu, fechado em si mesmo, repetindo-se eternamente. A frente de onda original, no entanto, não era detida por este anel, e continuava a se expandir, a cerca de trezentos mil quilômetros por segundo, curvando partes cada vez maiores do Universo. Logo o centro da esfera invisível, cuja superfície era delineada por esta frente de onda, viraria um buraco negro que continuaria se expandindo, à velocidade da luz, Universo afora.
No entanto, no caminho desta onda destruidora, havia uma máquina. Uma máquina e um homem que tentava urrar de dor enquanto seus pulmões queimavam, seus tecidos esboroavam, seus líquidos cristalizavam-se e evaporavam em direção ao vazio, e ele, mais sozinho do que qualquer humano jamais esteve, morria no vácuo e no gélido zero absoluto do espaço profundo, muito longe de seu planeta mãe.
A Armillary, flutuando no vazio interestelar, disparou novamente. O primeiro disparo, o que causou todo o problema, havia sido para frente no tempo, este, inversamente, foi para trás. Era preciso que fosse assim, e que o disparo fosse o mais forte possível, para que a frente de onda que ele causaria anulasse a primeira onda, destrutiva. A máquina estava, agora, desalinhada com as outras Armillarys e, portanto, este acionamento derradeiro foi inofensivo ao espaço-tempo, mas a fez saltar ferozmente em direção ao passado, consumindo até a última gota de energia que dispunha. Isto, de fato, gerou uma brutal ondulação inversa, que foi normalizando o espaço-tempo em torno do Sistema Solar, impediu a formação do buraco negro, e salvou a humanidade, que nem se deu conta disso.
Os bárions que constituíam a máquina e seu ocupante mais uma vez se foram vertidos em direção à informação primordial que continham, e novamente os deuses, que por ventura existam, puderam ouvir o grito desesperado de microondas de Steinberg, enquanto ele resvalava pelos éons, caindo, caindo, caindo no abismo do eterno, e além dele, até o princípio do princípio, até o átomo original, até o tempo antes do tempo, quando o Cosmos era apenas uma promessa, e onde tudo estava, para nós ao menos, estático, e em tão perfeito equilíbrio que nada (um nada cuja a simples ideia dele, a menor percepção profunda deste vazio, dilaceraria qualquer consciência, por mais rude e simplória que fosse) existia.
Se houvesse o tempo, então, ele inteiro se passaria para sempre, e ainda o que era nada continuaria sendo nada, sem fim, perfeito, cristalinamente equilibrado na ausência de absolutamente tudo. Nada.
No entanto houve uma comoção.
Houve a máquina.
Em um ponto infinitesimal, que foi tudo que ela conseguiu realizar de si mesma diante de tanto e tão brutal nada, a Armillary e seu ocupante morto surgiram, vindas do que um dia seria o futuro. Ainda assim eles só conseguiram dar alguma substância a si mesmos por conta de um vasto número de máquinas parecidas (vindas de outros povos inteligentes, também do futuro, de um sem número de outros mundos alienígenas e de mundos paralelos) estarem se materializando ali, ao mesmo tempo, no ponto focal do tempo, junto com a Armillary enviada pela humanidade.
Seria tolice imaginar que só os terrestres, em seu momento no tempo que ainda viria, criariam máquinas como aquela. De todos os pontos do futuro Universo elas chegavam, cada uma reforçada pela seguinte.
Mas, no fim, havia ali uma máquina e uma consciência inteligente, esmagadas mas ativas, em um ponto menor que a cabeça de um alfinete.
Foi como o riscar de um fósforo no centro de trilhões, e trilhões, e trilhões de toneladas de explosivo, no mínimo. O choque no perfeito nada com a imperfeita matéria da máquina e do homem sugou com força tão colossal a informação da fronteira até ali, que fez dois infinitos se lançarem um contra o outro, feito titãs, e colidirem seus ombros maiores que o espaço-tempo, destroçando com violência jamais repetida por toda a Eternidade aquilo que era o nada, e formando um tudo que, ainda inocente das novas regras, apenas foi, no sentido de se tornar, um volume imensamente maior que o que deveria ser a princípio, e continuou sua expansão daí, quando s novas regras fizeram sentido.
Mas este titânico ribombar não formou apenas o espaço-tempo e os embriões de matérias e energias. Se espaço-tempo está para o papel, e um desenho feito neste papel representa as matérias/energias, então o Choque Primordial criou também a experiência estética de o desenho ser visto. E fez isso a partir do impacto do nada perfeito com a imperfeita informação de tudo que Milton Steinberg (junto com todos os outros viajantes que ali aportaram) foi, sonhou, sofreu, amou, odiou, conquistou e perdeu.
No primeiro de todos os instantes da Existência, então, surgiram o espaço-tempo, suas representações em matérias e energias, e a fímbria consciente da informação auto-gerida. A “constante consciente” do Cosmos.
Feito o que ocorre com qualquer neonato, havia no Universo recém-nascido um lugar, um algo, e também a promessa sólida de um alguém.
Mas após a quase infinitamente vasta Luz da Colisão Primordial, houve escuridão. Por centenas de milhões de anos houve treva, por tempo o suficiente para que, por exemplo, se ela já existisse então, toda a história humana surgisse, crescesse e para sempre fosse esquecida. Era como se uma pálida, mas aterradora sombra do nada perfeito que havia antes de tudo voltasse a pairar pelo Universo. Para a semente consciente que remanesceu do nascimento do Cosmos, era como ser trancada em uma caixa e enterrada no mais profundo inferno tenebroso, gelado e completamente silencioso e escuro.
Pelo tempo de uma existência humana essa consciência foi feliz, ao perceber que estava viva, mas já ao fim desse tempo quase desprezível da Existência, ela como que corria pela treva sem fim que era seu mundo, gritando e gritando, com uma solidão cada vez mais apavorante, e com uma percepção cada vez mais aguda de que havia sido enterrada viva!
No primeiro milhão de anos ela viveu em amarga tristeza, sendo ela própria os colapsos de funções de onda que alimentavam o surgimento do que seria um dia a matéria. Era pouco, mas era algo que ela fazia.
Na primeira dezena de milhão de anos, ela chorou, consumida pela percepção de que nunca havia algo além da ausência de tudo para ver, tocar ou sentir. Por eras incontáveis, então, ela encolheu, dissipada pelo Universo, mergulhada na paranóia e no desejo de jamais ter sido.
Após a primeira centena de milhão de anos, a “constante consciente” do Universo se tornou apenas uma espécie de engrenagem, funcionando no automático, completamente louca, nada havia sobrado de sofisticado nela, apenas o abismo de algo que foi e sentiu, e que o isolamento infinito havia feito ruir sob seu peso. Sua psiquê, um dia vasta, agora estava desintegrada. Não havia mais nada dela.
Ou havia? Mais de duas centenas de milhões de anos depois, quando a bruma morna e intermediaria que preenchia o espaço estava pronta, enfim, e começava a colapsar nas primeiras estrelas do Universo, e a escuridão, que havia parecido sem fim, cedia agora a algo novo e cheio de possibilidades, a fagulha microscópica que havia sobrado da consciência primeva, tão pequenina e ainda por cima dissolvida e em expansão por e com todo o resto do Cosmos, quase perdida para sempre, sentiu e viu a ignição de novas luzes, e de um novo conceito.
Esperança.
Partes de si estavam mudando, pois assim era a Existência, mutante, mesmo que levando eras, sempre renovando seus terrores, mas também suas maravilhas! Era possível sentir, e com isso, pensar sobre isso, sobre sentir… Esperança. E então a esperança era assim, incrível, fantástica, possível!
E assim tudo cresceu, por bilhões de anos, o Universo restaurou sua fagulha perceptiva, e foi tentando, testando, mudando, chorando com as derrotas, maravilhando-se com as vitórias, amadurecendo, concentrando percepções em nebulosas, depois tornando essas nuvens em sóis, e, durante um rompante criativo, transformando discos de elementos primordiais em planetas, tão diminutos, mas cada vez mais ricos em novos recursos que eram gerados pelo espocar de supernovas! O artista farejava um caminho estético por ali. Planetas, quem diria, minúsculos pedaços de algo, eram a esperança de se chegar, pelo caminho sutil, às grandes coisas. Era o Universo fazendo e sentindo a si mesmo como uma pintura, como arte, como poesia em ultravioleta e raios gama, como esculturas de plasma estelar e sinfonias de abismos negros.
Ideias não surgem do nada, elas são a constante convulsão e mistura de experiências e novos dados, até mesmo para o Cosmos. Então não foi senão depois de uma planície viva e vigorosa quase sem fim, de tempo e espaço, que o Cosmos percebeu um outro conceito novo.
Perspectiva.
O Cosmos possuía uma, mas assim como ele próprio se estendia em múltiplas versões de si mesmo pelo Multiverso afora, sua perspectiva única, mesmo que privilegiada, não era e nem deveria ser unitária.
A vida, então, naturalmente, explodiu entre as estrelas, como um dom que uma passa a outra ao menor dos toques. E um dia, praticamente no instante presente, dada a percepção de mais de uma dezena de bilhão de anos que possuí o nosso Universo, ele representou a si mesmo em seres capazes de ostentar versões de sua “constante consciente” e de olhar a imensidão, e de se maravilhar, de questionar e querer saber, de analisar e criticar, de viver para explorar, criar e compreender.
Por muitos e vastos lugares no seio do Cosmos, então, houve consciência. Imperfeita, cruel muita vezes, mas consciência. Cada uma deste sem fim de criaturas sensíveis sendo e contendo uma fagulha do todo, conectada eternamente ao Universo. Cada um de nós, seres vivos e sensíveis, inteligentes e perceptivos, sendo um fractal que contém na sua mais profunda natureza a “constante consciente” do Universo.
O Cosmos viveu então um sem fim de histórias, embarcando junto com as extensões de sua inteligência, que são os habitantes conscientes ou não dos Universos que o compõem, em dramas que permearam a Existência e deram a ela tanta substância quanto uma boa trama, com sentimentos e criatividade, dá corpo a um bom livro.
E livros têm revezes, dores e sofrimento, mas também possuem em si amor, luz, glória e superação. O Cosmos não era indiferente, ele era apenas tão parte de cada lágrima das criaturas que nele habitam, e de cada riso exultante delas quanto elas próprias o são. Ele não observava, ele Éra cada suspiro de morte e cada grito de paixão. O Cosmos, é preciso citar, eram todas as histórias que foram, que são, e que serão, em uma sinfonia fantástica, soberba, incomparável de Amor e Fúria!
Algumas dessas histórias que o Universo viveu puderam ser vistas na Terra, outras não, mas para efeito desta nossa história, que vivemos juntos até aqui, autor, leitores e Milton, precisamos focar na fagulha dessa “constante consciente” que era e que dava atenção à Terra, neste nosso insubstituível e pequenino pedacinho da vastidão cósmica.
Aqui, como em outros mundos, a Mãe de todas as consciências, criada no Choque Primordial, também estava presente, e viu o mundo azul, parte de si mesma, se erigir da poeira, ganhar mares, céus e vida, e depois fulgir com a estrela da consciência humana. Aqui, como em outros mundos vivos e sensíveis do Cosmos, este mesmo mundo e suas criaturas, e o Cosmos que havia nelas, aprendeu lentamente o que era ser, existir, sentir, viver, respirar, doer, chorar, morrer, amar, valorizar, cuidar, superar a si mesmo, e fazer algo com paixão por todos e por tudo mais de bom que existe, legar algo de produtivo e construtivo.
No Sistema Solar, como por todo lado, mesmo quando a humanidade começava a ter ciência do infinito, o Cosmos ainda não possuía uma interface completa com seus fragmentos inteligentes, no entanto a “constante consciente” do Universo lá estava, claro, e os ouvia, sentia, era com eles, numa comunhão, novamente é precisa usar de citação, que só a sílaba e o som conhecem.
E, um dia, que corresponde lá ao começo desta nossa história, foi aqui, na Terra, que a consciência primeva percebeu, de repente, a própria realidade vibrando, confusa, e viu a anomalia se criar, forçando o espaço-tempo a uma curiosa configuração, onde ele se dobrava sobre si mesmo sem parar, em um rodopiar eterno.
A “constante consciente” do Universo percebeu então que esta anomalia, e muitas outras que estavam por vir, ocorrendo em outros mundos além da Terra, é que formariam o ponto onde surgiu a matéria enviada ao nada perfeito para criar o tudo, e com isso o Cosmos. Mas isso criaria também o seu doloroso, quase infindável e insuportável sofrimento no início da Existência, durante os primeiros duzentos milhões de horrendos anos de trevas e solidão. Só de perceber aquilo ela, a percepção consciente do Cosmos, horrorizou-se quase ao nível de enlouquecer novamente. Agora ela vivia em meio ao movimento, à Criação, e não conseguiria ser, novamente, enterrada viva em eras de pura treva e morte! Não, nunca mais! Nunca mais! Nunca!
Ela pensou em impedir aquilo! Se impedisse, ela própria não existiria, mas também não teria enlouquecido, não teria morrido horrendamente, pavorosamente enterrada viva! Por duzentos milhões de anos! Lembrava quase nada do que havia sido antes desse tempo, mas armazenava, em um dos dons herdados da humanidade de Steinberg, a dor que a havia dilacerado. Dor não se esquece, se abranda, mas não se esquece. E não, não poderia suportar saber que pôde evitar aqui e não o fez, era melhor ela explodir em novas os sóis de cada civilização que fez, faz ou fará uma máquina viajante no espaço-tempo! Matá-las, todas as raças, consumir a inteligência, tão duramente conquistada e ainda em seus primeiros e vacilantes passos, em chamas colossais! Manchar o firmamento com sangue, mas sufocar as trevas! Qualquer coisa, mesmo o assassínio universal, era melhor que duzentos milhões de anos de trevas sem fim!
Era melhor assim. Era bom que não houvesse nada dela para definhar na sufocante treva. E esta sua simples decisão fez o núcleo de estrelas envelhecer mais rapidamente, aproximando-as de uma morte selvagem e aniquiladora. Uma dessas estrelas era o Sol da Terra, no instante em que Milton Steinberg percebia, pela primeira vez, as ondas em seu café. Ninguém sobre a face do planeta azul sabia, mas cada um deles, estivessem em iates luxuosos ou palafitas, estivessem mortalmente doentes com o consumo, ou simplesmente felizes com a mais verdadeira amizade, todos estavam prestes a vaporizar, como se jamais tivessem existido, relegando ao esquecimento sem fim tudo o que achavam que possuía valor. Estavam já, visto o horror que o Cosmos sentia, todos mortos, enterrados e esquecidos para sempre.
Mas… Histórias.
A “constante consciente” do Cosmos não podia destruir histórias. Para ela isso era tão horrendo quanto seria horrendo para os bons entre nós destruir uma criança, ou uma obra de arte. Imagine-se prestes a queimar as obras de Mozart, ou de Chopin, Johann Baptist Strauss ou a Mona Lisa, imagine-se rasgando os textos que considera sagrados antes que outros, no mundo, pudessem apreciá-los. Pois era assim que o Cosmos se sentia, quando, enfim, os núcleos das estrelas de cem milhões de milhões de mundos voltaram ao normal. Não haveria novas, não haveria chamas.
O Cosmos havia, subitamente, em sua escala, amadurecido.
Não iria interferir. Na verdade, pelo contrário, a “constante consciente” do Universo ajudou. Sua dor era sua, e iria viver com ela, assim como sentia e vivia a dor e o amor de cada parte sua, de cada humano sobre a Terra, e de cada ser sobre um oceano vasto de outros mundos.
O Cosmos tornou-se mãe e pai de si mesmo, zelando, com sua consciência e lógica com o tamanho e a complexidade da Existência, por seu destino. Iria sofrer tudo que tivesse que sofrer, mas seria corajosa, e daria à luz a Criação!
Assim, houvesse o que houvesse, as coincidências guiavam, sincronicamente, Milton ao seu destino, o qual, no fundo de sua essência, ele próprio ansiava em cumprir. Então, enquanto era observado pela Eternidade, seus atos foram cercados pelos eventos aleatórios da vida.
Assim, foi só por acaso que Milton Steinberg nunca conseguiu se sentir fazendo parte de nada, tudo era insubstancial demais, como se sua alma ansiasse por algo mais universal, como se ele jamais se sentisse em casa estando limitado somente à Terra. Esse espírito era essencial para as mentes que formariam a consciência do Universo, mas surgiu nele por obra do acaso, sim.
Foi por acaso que Milton tinha as exatas condições biológicas e energéticas para captar e perceber a onda da máquina Armillary, que disparou em um subsolo, na Urca, Rio de Janeiro, e aprisionou o mundo.
Foi por acaso que o mesmo raio de luz e os mesmos eventos reforçaram em Milton a consciência do que estava acontecendo, de que o tempo havia se erguido, feito imensa montanha, e se curvado sobre si mesmo.
Foi por acaso que Rubens conseguiu encontrar Steinberg, preso pelos seguranças da via férrea, e ter forças para resistir a uma arma de choque, e pôr abaixo um sujeito mais forte do que o físico, e treinado em lutas.
Foi mera obra do acaso o encontro de Milton com seu velho e destruído professor, que aspirava se superar, evento que lhe serviu de oásis em meio a tanta loucura, e o fez ter mais esperança, por um momento que fosse.
Foi o acaso que fez Rheny encontrar com Steinberg para primeiro lhe dar a vontade de seguir em frente, e depois ajudá-lo de fato, pessoalmente, a seguir adiante com o destino que lhe aguardava, esbarrando com ele na portaria do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas na Urca. Sim, o rumo poderia ter sido outro, mas havia a anomalia, e, como foi dito, no fundo de si, Milton desejava fazer parte de algo maior que ele próprio.
Foi por acaso que o inconsciente Milton, perto do fim, entendeu que se a frente de onda da Armillary não fosse revertida, a Terra e talvez todo aquele Universo se tornariam um vasto buraco negro.
Mas estes, entre muitos outros acasos, tiveram o Cosmos conspirando por trás deles. De cada um deles. Corajosamente criando os eventos que o fariam, a ele próprio, sofrer o pior dos martírios e morrer por centenas de milhões de anos. Mas que dariam vida à toda a esperança, a toda a perspectiva, à consciência e às histórias que existem hoje, ruins, mas também as boas.
Assim, a Armillary, e todas as suas irmãs pelo Cosmos, partiram mais uma vez para antes do começo do tempo, e, novamente, no início de tudo, quando o nada encontrou algo, e a simetria foi quebrada, a nossa Luz se fez, radiante!
Epílogo, a Vida que Segue
O velho professor de Milton não pode agradecer. Passou no concurso para o Tribunal de Justiça, e foi ele próprio notícia de jornal. Era mais um caso de coragem e tenacidade, saindo da mais absoluta miséria para se tornar um “homem reintegrado ao mercado de trabalho”. O idoso sabia que o trabalho era só uma ferramenta para algo de superior importância, mas a imprensa só conseguia alcançar a primeira parte, e o antigo mestre dava de ombros, e dava entrevistas também, era bom incentivar as pessoas a aprender mais.
Claro que o velho homem falou de Milton Steinberg, o sujeito meio louco que acabou morto em uma explosão jamais esclarecida, em um prédio federal na Urca. Sem Milton e seu “pequeno grande gesto” ao lhe emprestar recursos para estudar, explicou ao repórter o novo funcionário da Justiça, ele talvez não tivesse conseguido. Não conseguiria jamais ver Steinberg como um criminoso.
As entrevistas pararam, mas uma jovem, também concursada do Tribunal de Justiça, veio ter com o professor, falar que também conheceu Milton, e que acreditava igualmente na inocência do sujeito. O nome da moça, claro, era Rheny, e ela e o velho professor se tornaram grandes amigos, amigos para uma vida toda, sendo ele padrinho de seu casamento com um homem extremamente inteligente e gentil, alguns anos depois.
O próprio professor viveu bastante, e tornou-se, quando ainda era ativo, importante no seu trabalho, um juiz um dia, que foi figura destacada da expulsão sem probabilidade de retorno (a partir de uma profunda e verdadeira reforma política, cultural e social) da velha oligarquia corrupta e tenebrosa que parasitou o governo brasileiro, disfarçando-se ora desta, ora daquela legenda, e atrasando o crescimento do país até o início do século XXI. Em verdade o professor voltou aos noticiários quando, em mais uma convulsão social, arriscou a carreira, e talvez a própria vida, junto com sua amiga, a advogada e representante do Ministério Público Rheny Alencar Roussel, surgindo de mãos dadas com ela em meio ao Povo Brasileiro, que enfrentava novamente saraivadas de balas de borracha, bombas de gás e brutais espancamentos, enquanto enchia mais uma vez as ruas, manifestando-se, exigindo justiça e respeito de seus governantes, que nada mais eram que seus servidores, jamais o contrário!
Um dia, o Brasil conseguiu. O mundo conseguiu.
E, enquanto viveu, o velho professor passava, às vezes, pelo bar na Carioca, no Rio de Janeiro, onde Milton havia explicado a ele que as coisas estavam emperradas e precisavam mudar, voltar a fluir.
Tirando um tempo de seu dia, sentando-se no bar, o mestre pedia uma xícara de café, e ficava ali, sorvendo sem pressa a saborosa bebida quente, e vendo as pessoas, em suas histórias, em seu ir e vir. Olhava em volta e percebia, a cada ano, um povo que superava um pouco mais seu início humilde e difícil, e que abraçava a ética. Uma gente que deixava de cultuar o consumo e o dogma fantasmagórico e cruel do status, e que começava a voltar-se mais e mais para o conhecimento, para a simplicidade e para a sabedoria, e, portanto, para a verdadeira paz.
Costumava ser nesta altura de seus pensamentos, então, que o idoso mestre erguia discretamente a sua xícara de café, sorria, e murmurava, com sua voz forte, cheia de dignidade e sabedoria, mas por isso mesmo tão gentil:
— Obrigado, Milton.
FIM
Compre Impresso: Sob o Olhar da Eternidade
Mas, antes, comente aqui embaixo, participe! A partir de suas opiniões, eu posso construir mais e melhores histórias para você.
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"O autor Wagner Ribeiro, já me conquistou criando uma personagem tão marcante como Mônica."_ Victor Tadeu, Desencaixados.
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— Merda! Merda, Mônica, por que fez aquilo?
A jovem mulher abriu os grandes, belos e expressivos olhos castanho-escuros, que a um momento estavam quase fechados, e sorriu francamente, ar de moleca zombeteira, colocando o indicador no lábio inferior e fazendo trejeito de geniazinha de antigo seriado de TV, enquanto pensava por um momento e então dizia, faceira:
— Impulso! Compulsão! — Mas o que ela queria mesmo com o sorriso brejeiro era que ele visse bem seus caninos, e encarasse a verdadeira natureza dela. Dane-se se ele sentia nojo, ela era o que ela era, e pronto. Aquele crápula arrogante haveria de engolir tudo o que Mônica significava, quisesse ou não.
O Agente Investigador Eduardo Araújo Weltman olhou para ela com desprezo, que ela devolveu acrescido de deboche e ironia, olhando-o de lado e dizendo para ele:
— Eu fiz meu trabalho, Edy. E você, pode dizer que fez o seu?
— Monstro… — Disse ele, entre dentes.
— Então o que vai fazer lá dentro diante da Comissão? Se fosse me crucificar, teria trazido consigo a gravação. Cadê a gravação?
Ele estreitou os olhos, e respirou profundamente, lentamente. Era um homem charmoso, de traços fortes e masculinos, temperado por um sutil ar sensual de atrevimento, e tinha o que as mulheres chamavam de um belo sorriso, e onde as mais atentas viam uma boca carnuda, convidativa. A cereja do bolo, segundo Mônica, era que Weltman era, no fundo, tímido.
Naquele momento, no entanto, ele estava sério, carrancudo. Parecia tentar dizer algo que não conseguia expressar. Ficaram se encarando, a meio metro um do outro, sentados na luxuosa antessala da Comissão. Ambos agentes, ambos cientes que seriam interrogados acerca de uma missão que acabou em um banho de sangue, e que isso talvez lhes custasse bem mais que as carreiras. Havia um clique-claque em algum lugar, de algum relógio fora de vista, e nada mais, apenas o silêncio. Mônica ameaçou dizer algo, mas Weltman se levantou e foi falando:
— Eu… Destruí o CD com a gravação. Mas fora isso, vou cumprir meu dever lá dentro. E pedir meu afastamento da DCOR (1) imediatamente. É através do DCOR que mantenho minha ligação com os Dragões Vermelhos.
Ela ficou olhando para ele por um momento, e não soube o que dizer. Não obstante sua aparência tão jovial, Mônica estava viva há sessenta e nove anos e, apesar disso, não sabia o que dizer enquanto ele afirmava que iria embora. Ficou então séria, não tinha vontade de sorrir, e deu de ombros. Se ele queria ir para o inferno, que fosse, disse com veemência para si mesma, na tentativa de se convencer que pensava de fato assim.
Então a ampla porta metálica da sala da Comissão se entreabriu, e um assistente pôs metade do corpo para fora. O jovem moço avaliou por um segundo a linda mulher sentada, cuja pele clara e os longos cabelos em tons castanhos profundos contrastavam sensualmente, e então olhou para o homem, dizendo:
— Agente Weltman? O senador Coriolano pede que o senhor entre primeiro.
Eduardo ajeitou a gravata de seu terno, e sem olhar para Mônica, fez um sinal impaciente para que o jovem auxiliar entrasse na frente, e entrou a seguir. Diante das costas largas do homem que iria enfrentar a temida Comissão agora, Mônica Alencar Deveraux deixou finalmente uma expressão triste tomar conta de seus grandes e belos olhos, e murmurou:
— Eu sei o que você vai fazer, seu idiota… Vai me salvar.
O depoimento a portas fechadas de Eduardo demorou cerca de duas horas. Então ele saiu, e passou por Mônica sem que trocassem uma palavra, mas mesmo sem olhar para trás, ela soube que ele havia parado no corredor e a olhava, as grossas sobrancelhas escuras vincadas de preocupação. Mônica sabia que era a agente mais destacada entre os Dragões, mas sabia também que era a mais controversa e a mais frágil diante da Comissão. Todos sabem que a Comissão tem ares de cordialidade e civilidade, mas que usa qualquer método para manter seus agentes na linha, e não raro julga pela morte dos agentes que acha perigosos para a instituição. E, sem a menor dúvida, Deveraux era a mais instável e perigosa peça atualmente em jogo.
— Boa noite, senhorita Deveraux. — Disse o senador Coriolano calmamente, enquanto retirava de uma pequena pasta alguns documentos, e um tablet, e os colocava sobre a mesa de ébano espelhado que estava a sua frente, entre ele e a aparentemente jovem agente. Ele não olhou para ela, que se sentava na cadeira solitária que ficava no centro do salão. Em frente a ela, feito juízes da vida ou da morte, os sete membros atuais da Comissão. Todos impassíveis, feito estacas afiadas apontadas para Mônica. Como a agente não respondesse, o senador ergueu o olhar aquilino, e repetiu com sua voz grave e soturna: — Boa noite, senhorita Deveraux…
— Boa noite. Aquilo ali no canto é um emissor laser?
— Sim, Deveraux. É uma solda laser industrial especialmente adaptada para emitir um único e intenso disparo, capaz de carbonizar você. A cerca de três metros em volta de sua cadeira há um campo invisível detector de movimentos. Se tentar se mover além deste perímetro, o laser vai mirar no seu corpo e disparar, tudo numa fração de segundo.
Mônica sorriu, sensual e fingindo-se divertida. Ela fitou o senador por debaixo de suas bem delineadas sobrancelhas, enquanto foi dizendo:
— Ah, mas para quê tudo isso? Eu sou apenas uma pobre menininha inocente. — E riu, um riso de menina mesmo. Pôde sentir os velhos se arrepiando de medo.
O senador desviou imediatamente os olhos dos de Mônica, e pigarreou incomodado, dizendo a seguir, ainda em seu tom monocórdio:
— Senhorita Deveraux, gostaríamos que nos fizesse um relato de suas atividades no desfecho da Operação Arani (2) onde a senhorita deveria apenas mandar um recado. — e ele frisou o termo, ela sabia, para que Deveraux lembrasse que eles possuíam o controle sobre a coleira dela. Seria uma coleira bem larga e folgada quando sua mãe, já bem idosa, e sua irmã, também muito velha, falecessem, pois talvez Mônica não ligasse tanto assim para filhos de sobrinhos. Talvez. A agente riu-se, com desprezo, e ele prosseguiu: — E acabou tomando para si a decisão sobre… Como deveria terminar aquela missão.
— Primeiro me diga o que Weltman disse.
— A senhorita veio aqui apenas responder…
— Senador. Eu vou lhe contar exatamente o que houve. Mas antes, olhe para mim…
Como Coriolano evitasse olhar para ela, Mônica respirou fundo, semicerrou os grandes olhos, concentrou-se em algo escuro dentro de si, e abriu a boca, falando com uma voz que era talvez a voz dos mortos, ou a voz inquietante do rumor assombrado de um oceano antigo, terrível e esquecido em algum recanto sombrio do Universo. Sua voz era um som apavorante, mas ao mesmo tempo hipnótico. Era um reverberar demoníaco, mas ao mesmo tempo belo, sua voz era tudo, menos humana, quando Mônica disse:
— Olhe para mim.
As gotas de suor começaram a brotar da testa do senador. Coriolano, o Coriolano Malvadeza ou o Sanguinário Gentil, como era chamado nos corredores do Senado, era um homem duro, firme e de grande poder, sua força de vontade era tremenda e notória, pois ele já fizera vergar presidentes, e mandara destruir mais vidas do que podia se recordar, ainda assim seu coração parecia querer rasgar o peito ao ouvir a terrível voz de comando daquela besta-fera em forma de mulher. Ele a odiava intensamente, nem sequer tentava esconder, mas como todos os outros da Comissão, devia saber que residia nela um trunfo de que não podiam dispor em seus planos para o futuro dos Dragões Vermelhos. Ela possuía um raro e genuíno dom sobrenatural. Até onde sabiam, nenhuma outra agência mundo afora possuía um ser como ela entre seus agentes.
— Olhe… Para… Mim.
Todos olharam para ela. Não havia um único par de olhos naquela sala e nas salas de vigilância, que monitoravam o lugar, que não tivesse se fixado na mulher alta, bonita e de aparência jovem e elegante, que estava sentada com sensual charme no meio da sala da Comissão. Mas por mais terrível e irresistível que fosse aquela voz horrenda e sedutora, Mônica não era onipotente, sua vontade não dominava completamente quem a ouvia, e vários guardas de segurança saíram das sombras nos cantos da sala, olhos vidrados nela, mas o instinto treinado os fazendo apontar diversos canos de fuzil direto para Deveraux. Coriolano, que olhava trêmulo de fúria bem diretamente para o olhar escarnecedor da agente, ergueu a mão, e os fuzis foram recolhidos, e ele, o senador, disse, num balbuciar quase selvagem:
— Weltman… Fez seu relatório… E disse que você não teve escolha senão entrar em conflito com todos, e que ele a ajudou a sair… E que você tentou ajudar a falecida agente Steiger, mas que os bandidos a esfaquearam… Figueiras está vivo e vai levar o aviso aos chefes dele… Agora, sua… Coisa… Diga como sobreviveu a tudo aquilo?
— Weltman pediu afastamento?
— Eu neguei.
— Sim… Sim… — Ela sorria — Na verdade o agente Weltman foi quem me conteve e me fez deixar Figueiras livre. Entenda, Coriolano, se me quer trabalhando para você, escreva no seu tablet aí, com suas mãozinhas nodosas, que Eduardo Araújo Weltman não é dispensável, ele…
— Como diabos você sobreviveu, porra?!!! — O grito salivante do senador foi tão súbito e violento, que Mônica se surpreendeu e calou-se, mas manteve o ar de zombaria que quarenta anos de treino lhe ensinaram a pôr no rosto quando queria se proteger do mundo. O senador tinha os olhos injetados e uma tal fúria que ela poderia jurar que ele também era, ou deveria ser um filho das trevas. Foi então que ela entendeu. Mônica olhou para ele longamente, enquanto Coriolano Malvadeza se recompunha e tomava das mãos de uma secretária um lenço e um copo de água. Em poucos momentos ele era novamente um homem elegante e sério, um político de carreira que se reelegeria vezes seguidas apoiado em seu carismático e paternal semblante e nas falcatruas políticas que sabia fazer como ninguém. Mas Mônica sabia muito bem o que ele desejava, e disse:
— Senador… Percebi algo muito interessante a seu respeito, e vou lhe contar. Você acha que eu sobrevivi aos tiros porque sou o que sou, e quer saber como eu o fiz. Pois o senhor deseja essa imortalidade, deseja ser como eu, não é? — E diante do olhar de asco contido e falso, e do silêncio muito esclarecedor de Coriolano, Mônica sorriu e disse, em sua ainda potente, mas agora bela e musical voz feminina, a sua voz natural: — Eu vou te contar então, senador do povo brasileiro, preste atenção que vou contar o que aconteceu naquela noite, mas não vou direto ao ponto, pois eu preciso deixar suas mentes atentas ao contexto. Era uma vez… Uma equipe da Polícia Federal que estava de campana na Bahia, vigiando de perto um político extremamente corrupto, o Deputado Antônio Bomeninno, há cerca de seis meses. No início objetivando apenas acumular provas contra ele para um eventual processo, se ele pisasse fora demais da linha demarcada pelo Governo. Mas os federais descobriram, quase sem querer, no meio do caminho, que algo muito grande estava sendo tramado por outro político, um tal Senador Figueiras, que era amante da mulher de Bomeninno, envolvendo propinas de milhões de dólares para manipulação de quem e como seriam feitos os softwares gerenciadores de novas versões das urnas eletrônicas no país.
— Sabemos de tudo isso…
— Avisei que não iria direto ao ponto, uma mulher precisa estabelecer contextos, Senador. — Aqui ela pausou com um sorriso entre falsamente simpático e verdadeiramente debochado — Bem, quando esta informação circulou pelos corredores da Federal, imediatamente os Dragões entraram em movimento, e encamparam a operação antes que a cúpula do Governo a mandasse para o limbo. Sabemos que é imprescindível para o bom funcionamento dos planos dos Dragões que os políticos corruptos que não estivessem nas mãos da organização fossem tirados do jogo. De modo que o que era apenas uma operação para acumular provas contra um ladrãozinho de quinta categoria, tornou-se um procedimento cirúrgico nosso, para extirpar outro bandido, de maior quilate. Para tanto os Dragões usaram o velho método de dar corda para que ele preparasse sua própria forca, então, quando ele buscou com intensidade contato com uma gigantesca empresa multinacional, os Dragões assumiram, infiltrando uma agente na negociação, chamada Érika Steiger, que para os gringos era uma especialista em negociações paralelas no Brasil, e para Figueiras, uma representante extra oficialmente contratada pela tal mega empresa. No fim das contas, para os Dragões, Érika deveria tirar o máximo de informação de Figueiras, e o deixar pronto para o abate. Mas não foi bem assim que tudo se desenrolou, os senhores sabem.
Ocorre que Steiger não enviava notícias há semanas, quando a Comissão mandou a equipe envolvida no caso preparar uma nova inserção de agente infiltrado na operação de Figueiras. Coriolano escolheu pessoalmente a agente especial Mônica Alencar Deveraux como a próxima infiltrada, e tomou a última mensagem de Érika como base para colocar Deveraux no esquema, pois Steiger afirmava que Figueiras procurava febrilmente um hacker que possuísse conhecimentos sobre os sistemas de segurança do Senado. Mônica foi treinada e instruída para saber quebrar os códigos de acesso, e lhe foi dado um hardware especial, uma chave, que a permitiria entrar no sistema do Senado brasileiro, e provar que era a hacker que Figueiras precisava. Mônica, indicada a um comparsa de Figueiras através de um contato também sob controle da Federal, conseguiu uma entrevista virtual com um representante do Senador, e provou ali ser capaz de ajudá-los, então deixou seu número de celular, e ficou aguardando o contato. Foram duas longas semanas em um hotel de luxo baiano aguardando o chamado. Ela, Mônica, se fazendo passar pela engenheira de software Carmem Luzia Rodrigues, a hacker Carmina, e Weltman junto com outros agentes dando-lhe cobertura, disfarçados como hóspedes do mesmo hotel.
Weltman já ouvira falar de Mônica, e já há muito tempo estava bastante curioso a respeito dela. Devia ter ouvido muitas das estranhas histórias que contavam acerca da agente sobrenatural, que lutava sozinha contra vários homens, que era uma mistura de lobisomem com curupira (3), e tinha voz de Iara (4) que congelava a alma. Eduardo havia sido policial civil no Rio de Janeiro, trabalhando na divisão de entorpecentes, teve que lidar com todo o tipo de monstros, alguns dos piores dentro da própria polícia. Não gostava de dizer-se corajoso, era antes disso capaz de respeitar profundamente seus oponentes, e por agir assim chegou mesmo a sobreviver em antros de violência e corrupção com a moral razoavelmente intacta. Era, sim, apesar do que dizia, um homem bom e corajoso, mesmo que um tanto embrutecido pela vida. Portanto, provavelmente não sentiu medo quando esbarrou com Mônica bebendo um drinque no bar do hotel, mas alguma profunda e respeitosa curiosidade. Mal tinha trocado meia dúzia de palavras formais com ela desde o início daquela operação, e aquela poderia ser a oportunidade de conhecê-la pessoalmente. Ela agitou a cabeleira escura, para jogar as mechas para trás, e deu nele uma olhada treinada, miúda e desdenhosa. Provavelmente Weltman a achou, naquele primeiro contato, uma mulher bonita, mas absolutamente normal. As aparências são enganadoras, na maioria das vezes, então o homem resolveu dar mais um passo, feito um gato curioso, e disse simplesmente:
— Boa noite.
— Posso arrastar você para o fundo do lago, agente… Iara, já deve ter ouvido falar… — murmurou ela, quase sem olhar para ele, bem baixinho, de modo que só ele pudesse ouvi-la. Sua boca pareceu divertir-se com as palavras, pois a imagem fugidia de um sorriso passou por ela enquanto falava.
— Gostaria de conhecer a pessoa por trás do rótulo. Posso? — Disse ele, incisivo, mas ainda assim mantendo um tom suave na voz, que deu a ela um pressentimento de que o atraente e charmoso agente poderia ser alguém que ela gostaria de conhecer melhor. Até aquele momento pretendia tratá-lo com a acidez arraigada com que tratava a todos, mas aquelas palavras duras, mas honestas, a fizeram mudar de ideia.
Ela ajeitou-se na cadeira alta do bar, fez um sinal para o barman que colocou uma nova taça de vinho sobre o tampo à sua frente, e ela se apressou a dizer: — Mais uma, por favor. — E voltando-se para Weltman: — Bebe um chadornay comigo, cavalheiro?
— Vinho? Sim, obrigado. — Disse Eduardo.
— Bem, mas que tal sentarmos em uma mesa e verificarmos o que pode ser feito acerca de rótulos, monsieur?
Ele aquiesceu, e ambos foram para uma mesa mais reservada. Mônica pediu e levou consigo a garrafa de vinho. A aparentemente jovem mulher pousou sobre a mesa a garrafa e uma pequena e provavelmente caríssima bolsa que trazia consigo à tira colo. Era um tanto fora de protocolo que, durante a missão, eles se falassem assim, mas Weltman precisava saciar sua curiosidade, e Mônica precisava se distrair durante aquela noite tão parada, conversando com alguém interessante.
— Sabe que Coriolano vai reclamar feito uma velha coroca quando souber que quebrou o protocolo vindo me dar o prazer de sua companhia, não sabe? — Disse ela com um sorriso jovial e leve. Ela parecia tremendamente descontraída, mais ainda assim Weltman podia perceber algo no olhar de Mônica que recendia a coisa antiga, pesada, como se ela tivesse visto mais coisas do que sua idade aparente permitiria, e que muitas dessas coisas tivessem sido bem ruins. O homem reconheceu um pouco do seu próprio olhar no dela.
— Respeito o velho, mas ele não está aqui. Ele que se dane, o Malvadeza. Vou tentar saber quem ele é outra hora. — E sorriram um para o outro, riso franco, enquanto se serviam de vinho. Então Weltman voltou a falar: — Pois bem, quem é você, Mônica?
Mônica ficou mirando Eduardo, como se estivesse estudando até que ponto o cara poderia aguentar a verdade, o que fez o homem sorrir para ela, um sorriso que muitos chamavam de sorriso canalha, mas que era apenas a franqueza nua da alma dele, dizendo "somos de carne e osso". A bela mulher colocou a taça em que bebia sobre a mesa, acompanhando o movimento com os olhos. Depois voltou a olhar para o homem na frente dela e, para total surpresa do sujeito, entoou, sorrindo delicadamente, em uma voz também delicada e docemente afinada:
— Talvez você não entenda, mas hoje eu vou lhe mostrar. Eu sou a luz das estrelas. Eu sou a cor do luar. Eu sou as coisas da vida. Eu sou o medo de amar. Eu sou o medo do fraco. A força da imaginação. O blefe do jogador. Eu sou, eu fui, eu vou… — e concluiu, apenas recitando a letra, e não mais cantando, sem sorrir, na verdade com um tom taciturno no olhar: — Eu sou a beira do abismo…
E então, mudando novamente, agora com a expressão mais pura e delicada no olhar antigo, Mônica baixou os olhos, e ficou observando, sem ver, a taça de vinho quase extinto.
Depois de um longo momento fitando a garota, Weltman voltou a respirar. Ele não sabia o que dizer. Não fora ali paquerar Mônica, seu objetivo não era tão primário assim, embora ela o estivesse atraindo mais e mais, mas antes queria conhecer a tal super agente, coisa necessária se iriam operar profissionalmente juntos. Ocorre que ela o estava encantando, depressa, e ele acabara de descobrir que não sabia o que fazer quanto a isso.
— Bonito. — Ele disse, enfim.
— Apenas o Raul, sujeitinho doido, mas muito legal.
— Fala com intimidade, é fã do trabalho do cara?
— Não, eu o conheci pessoalmente, e avisei a ele que aquela história de "Grã Ordem Kavernista" ia lhe custar o emprego. — Ela deu uma piscadela e riu, Eduardo riu também.
Ele, encarando o bom humor dela como uma piada sobre ter convivido e aconselhado um artista morto quando ela ainda deveria ser um bebê, e meio sem se aperceber o que ele próprio estava fazendo, mas agindo simplesmente porque precisava agir, pegou ambas as mãos dela nas suas próprias, por sobre a mesa, e ficaram se olhando longamente. Então Mônica disse:
— Você não quer fazer isso. Eu sou a beira do abismo, lembra?
— Quando entramos para os Dragões, eles nos dão as fichas das pessoas que vão trabalhar em nossa equipe, e a sua era vaga, quase incompreensível, como se você tivesse uma liberdade especial de colocar ali o que quisesse. Encontrei apenas alguns poemas escritos por você, e uma foto sua… Nunca vi aquilo. Eu confesso que reclamei com o cadastro, e eles me disseram que o Malvadeza em pessoa mandou deixar como estava.
— Ah! — Fez ela, repetindo sem perceber o lindo e singelo sorriso de moleca da tal fotografia, e, claro, tangenciando o assunto a respeito das liberdades especiais dela — Sei qual é. A foto. Ah, fui pega totalmente de surpresa naquela foto!
— Estava encantadora, mas o que me impressionou ainda mais foram seus pensamentos… Os poemas, reclamei mas li. Durante o período de adaptação, eu treinei com homens que já haviam trabalhado contigo, e eles falavam a respeito de uma mulher corajosa, que eles respeitavam, mas que temiam muito, eu podia ver o receio deles nas entrelinhas, eles não tinham só medo, tinham verdadeiro pavor de você. E eu dizia pra mim mesmo que aquilo não tinha nada haver com a mulher dos poemas. Então achei que eu gostaria de conhecer a verdadeira Mônica, com a qual finalmente eu vou trabalhar.
— Ninguém conhece.
— Eu desejo honestamente conhecer. A verdadeira. — E ele ficou olhando para ela, que lhe devolvia um olhar doce, a coisa antiga em seus olhos parecendo arrefecer, se fazer menina, uma menina que sonhava, como todas as meninas sonham.
Então, sem resistir mais nem um segundo, Weltman inclinou-se em direção dela. E a beijou. Um beijo em crescente, um beijo que começou brando, mas tomou ares de tempestade, como se um devorasse a boca do outro! Doçura, vinho, e hálitos saborosos e passionais misturando-se, em uma sensação formigante e inebriante que lhes tomava os corpos, aquecendo-os e atiçando a fome de quero mais e mais! A tempestade deu lugar a suavidade, e voltou a rugir, duas, três vezes, e ninguém estava contando mais depois disto. Quando, enfim e depois de longo e marcante beijo, o fôlego se acabou (mesmo que o ardor só estivesse começando) abraçaram-se, aconchegando-se um ao outro. Então Mônica, que pousou a cabeça no ombro do homem, pôde sentir o odor masculino dele, penetrante e atraente, um cheiro muito bom, excitante, quente, muito quente, que a envolvia numa sensação incrível de liberdade e submissão ao mesmo tempo, de segurança… Mas também, após um momento de inocência ardorosa, que passou rápido demais, Mônica pôde sentir a pulsação hipnótica e acelerada do sangue teso e passional de Weltman na jugular do pescoço dele, podia mesmo sentir-lhe o gosto exalando da pele.
Quando ela deu por si, percebeu que ansiava por beber da vida dele, e que o predador voraz dentro dela começava a vibrar, inflamando-se! Mônica, imediatamente, soube que ela não deveria e não poderia fazer aquilo, que não poderia sequer arriscar se apaixonar por ele, não poderia jamais amar de novo, e matar de novo! Foi neste instante que ela se desesperou, mais uma vez, com sua sina monstruosa: quando foi engolida pelas trevas, quando voltou do mundo das sombras e do ar, há mais de quarenta anos atrás, Deveraux passou a viver o estigma de sua fome medonha, capaz de matar quem lhe era indiferente, quem ela temia, mas também quem ela amava. Mônica sentiu crescer o angustiante horror de si mesma em seu coração! Subitamente levantou-se, apavorada e enojada de si mesma! A cadeira em que ela havia sentado caindo para trás, com estardalhaço, e os olhos de Weltman tentando entender o por quê daquele rompante. Ela sabia o que precisava dizer, e disse, não muito alto, mas com intensidade cortante:
— Já descobriu o gosto que eu tenho? Pode dizer aos outros rapazes que sou de carne e osso, pois deve ter apostado com eles que iria vir aqui me dar um pega e ver qual é, não foi?
— Eu não…
— Ah, me poupa, Weltman, você vai me dizer que é um cara que não julga as pessoas? Que não vai me crucificar também assim que descobrir o monstro que eu sou. Pois escreve aí, agente Eduardo… — Em seguida ela cantarolou novamente a música, com afinação, mas também com ácida ironia na voz: — Eu sou o sangue no olhar do vampiro.
E ela sorriu com um falso deboche, e saiu caminhando para longe com elegância, deixando o homem atrás de si entendendo muito pouco, e aborrecido por ter sido julgado sem direito a defender-se, e ainda mais contrafeito por causa da impressão de que ela brincou com ele durante aquele beijo. Em essência sendo um homem tímido, quando se tratava de relações, ele se sentiu um completo idiota, envergonhado por, pela primeira vez desde a juventude, se deixar levar por um momento bobo e passional, e embaraçar-se daquele modo com uma colega de trabalho. Pior ainda se sentia quando, olhando para dentro de si mesmo, percebia que a mulher não deixara nele uma impressão passageira.
Somente quando Mônica, por sua vez, entrou no elevador, e se viu absolutamente sozinha, foi que se permitiu chorar. Chorar por, há mais de quarenta anos, estar morta. Sentia-se e transpirava solidão, uma solidão que nenhum ser humano seria capaz de experimentar, enquanto humano. A mulher apoiou as costas no espelhado interior do elevador, e, torcendo para que ninguém entrasse (o que, dado seu estado e sua natureza sombria, afastaria mesmo qualquer um que não tivesse um motivo de vida ou morte, ou que possuísse força de vontade sobre-humana), olhou para o alto, como buscando um Deus que ela, sinceramente, almejava existir, e deixou lágrimas ardentemente dolorosas escorrerem-lhe pelas faces suaves.
Justo naquele instante seu celular chamou, com mensagem de Figueiras, marcando encontro com ela para a noite seguinte.
CONTINUA…
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DCOR: Diretoria de Combate ao Crime Organizado – Polícia Federal do Brasil.
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Arani: do Tupi Guarani, significa "tempo furioso".
Curupira: Ser da mitologia brasileira que protege os animais e florestas, que protege os tesouros do Brasil.
Notas de Rodapé:
Iara: Outra criatura da mitologia brasileira, também conhecida como Mãe D'água, espírito de incrível beleza feminina, que atrai os incautos para afogarem-se nas águas de lagoas assombradas por ela.
Turul 2, sentiment identic cu cel de la turul 1.
A política é a arte de conviver com quem você não concorda. É a arte infinita de lidar com conflitos que nunca acabam.
Quando você é minimamente politizado no trabalho...
We (people of Spain) don't know either😶😐
LMAO
Un partido que a duras penas logra mantener una cohesión. Una candidatura llevada por un arrastre bajísimo, con una experiencia que remite a una Subsecretaría —cuyo mérito único es llegar hasta el final. Un partido que no puede conciliar su propósito de «líder de coalición» con una exasperación centrífuga de «notable partido principal» (F. Espinoza existe porque logra reunir unos votos en un sur derechizado, «gracias por los servicios encomendados»). Una candidatura proveniente de una senaduría —que es lo que le ha entregado la voz— cuya elección no fue «popular» sino por designación de Comité (reemplazo de Á. Elizalde). Un partido que afirma un «socialismo democrático» cuando no se puede sostener siquiera un programa socialdemócrata (¿socioliberalismo? ¿socialdemocracia escandinava? ¿T. Blair, O. Palme, H. Schmidt?) ni reconoce una legitimación considerable de organizaciones a su izquierda sin lloriquear («¡ay, el FA aquesto! ¡ay, el PC aquello!»).
De acuerdo, estas primarias manifiestan quizás su propósito más «racional» (dígase, interesado): medirse la tula las fuerzas entre sí. Pero el tan renombrado «socialismo democrático», con un partido plataformero nacido del propio PS ¿no habría sido mejor unirse con Tohá? ¿No tendría mejor camino, mayor eficacia, unir lo que, en rigor, nunca estuvo lejos? ¿Tan distinto es el PPD del PS? (Porque, tercera vía...)
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Advertencia para despreciables e imbéciles. (1) Desprecio con ahínco el FA por su socioliberalismo sempiterno con exasperante progresismo. (2) Considero al PC actual meramente como socialdemócrata —a lo sumo, eurocomunista, si me pillan generoso. (3) Si me interesa esta candidatura (aunque sea para despreciarla), desde luego, no me considero afecto a alguna derecha. (4) Si me llaman ultrón, lo consideraré piropo y empezaré a jotear.
¿De aquí a febrero 23 se hablará allí y acullá sobre Europa ante el conflicto ruso-ucraniano a la espera de quién carajo saldrá en Alemania?
Quizás, quizás, quizás
Qué volá jj
RT sacando en cara dos cortes (bien descontextualizados) de Irene Montero sobre la situación ruso-ucraniana-OTAN para demostrar «la inconsecuencia sobre Rusia y Ucrania»
—cuando, desde el inicio, ella y su partido defendieron la pacificación con Rusia ab initio y considerando sus intereses
(Jamás pensé en defender a I. Montero, pero bueno)
takeaway: “Age does not determine wisdom”
Sophisticated Slavery ©️ VN
Viver no Brasil ultimamente tá complicado.
Se você se sente doente, não sabe se é: Dengue, Chicungunya, Febre amarela, COVID, Hepatite, Leptospirose, doença do bolsonarismo, doença de Israel cristão, doença do golpe só com tanque na rua, doença do antivax, doença do voto impresso. Tá complicado viu.